Martin Brausewetter: A obra como processo Ana Gonçalves Magalhães Historiadora da arte, curadora e Docente do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC USP) A pintura de Martin Brausewetter faz-se de uma trama de superfícies e de formas abstratas em camadas de cores sobrepostas, vestígios do gesto do artista que guiam nossos olhos por reentrâncias e saliências, por sua vez, fruto do manuseio de uma lâmina que disseca minuciosamente as vârias camadas de têmpera aplicadas à superfície da tela. Sua pintura é como uma pele, cujas cicatrizes são marcas de um tempo distendido. Talvez o aspecto mais importante de seu trabalho esteja na confrontação de dois elementos essenciais, isto é, a técnica por ele adotada e os motivos sugeridos pelas composições de formas abstratas. Brausewetter adotou a têmpera a ovo, uma técnica muito tradicional da pintura e que, por isso mesmo, exige um longo tempo de preparo das telas, ir e vir sobre as mesmas superfícies, aplicando paulatinamente as camadas de cor. Das formas criadas a partir do processo de desbastamento das camadas emana a ideia de desgaste, de ruína, na qual ele imprime uma noção de tempo mais subjetiva, que parece aludir à memória enquanto experiência vivida. Elas ainda nos levam a perceber suas composições como reminiscências de um território, cujo relevo é concebido através da deposição e raspagem das camadas de cor, que nos persuade a tocar-lhes as superfícies, como se fôssemos levados a fazer o reconhecimento de um terreno. Elas nos sugerem cartografias inteiras, imaginamos arquipélagos, oceanos, seres estranhos, fantasiosos, como nas cartas náuticas do período das grandes navegações, nas quais a terra era descrita por traçados mais frouxos, compostos, muitas vezes, por uma série de figuras mitológicas – elas mesmas dando forma a determinados territórios. Assim, os antigos mapas faziam da descrição dos continentes e dos oceanos a coisa em si, isto é, as formas que determinados pedaços de terra assumiam aproximavam-se da ideia que os exploradores tinham de tal lugar, e de que criaturas estranhas o habitavam. Neste sentido, as pinturas de Brausewetter também são a coisa em si, ou seja, as próprias cores, suas texturas, suas transparências. Por outro lado, essas formas abstratas também parecem se aproximar de imagens vistas através de microscópios de alta precisão, de microrganismos em atividade permanente, ou ainda de composições celulares, o que nos remete às imagens que resultam de explorações científicas, e não mais de um universo visto à distância, mas em sua dimensão celular. A escolha da têmpera a ovo pelo artista ganha, assim, um sentido único, pois que confrontada com formas que podem remeter a um tempo futuro. Muito empregada entre os séculos XIII e XV para pinturas em suporte de madeira e como base para os afrescos, a têmpera demanda habilidade e destreza em sua manipulação, e em sua dimensão física, nos leva a pensar no processo de aglutinação de seus componentes orgânicos e minerais. Além disso, determinados planos de cores entrelaçadas criados por Brausewetter evocam os chamados “pans de peinture” dos mestres primitivos italianos (tal como sugerido por Georges Didi-Huberman, diante de alguns afrescos de Fra Angelico, por exemplo), como podemos ver nas superfícies trabalhadas em azuis e verdes claros acinzentados. Na pintura dos primitivos italianos, esses “pans de peinture” exprimiam uma suspensão contemplativa na representação, que nas composições de Brausewetter podem ser entendidas como respiros ou pausas. Por outro lado, essas superfícies de suspensão constituem-se de uma sobreposição de cores, que também remetem a certos procedimentos de preparação de afrescos do Trecento e do Quattrocento italianos, a exemplo da preparação das cores entrevistas nas superfícies de Giotto, para a Capella degli Scrovegni, em Pádua. A escolha da têmpera é fundamental para tal efeito, pois seu aspecto físico parece dar maior materialidade às camadas, ao mesmo tempo em que permite o trabalho sobre sua transparência. As partes de azul profundo cumprem um papel vital na composição das telas, e parecem, ao longo do tempo, terem se tornado mais e mais presentes. Elas nos mergulham em espaços infinitos, somos arrastados para dentro da tela, enquanto as camadas de tramas coloridas saltam para fora dela. Diante dessas pinturas, o espectador tem uma experiência que não é só puramente visual: ela se faz antes da qualidade física de sua superfície e de composições que constroem efetivamente um espaço. O azul profundo ainda cumpre um outro papel, isto é, de se apresentar na dualidade de ser o vazio e o cheio. Este efeito é alcançado na medida em que o artista prepara as camadas de têmpera, e sobretudo essa camada final, sem fazer uso de verniz algum, o que lhe dá um aspecto aveludado. Cada pintura se abre para espaços imaginários para além daquilo que vemos e de onde observamos a atividade desses corpos. Figura 1 A pintura mais recente desenvolve-se a partir de composições como as da figura 1. Já vemos a trama de texturas e cores, trabalhadas a partir do uso da lâmina na incisão de superfícies, e o azul profundo – que passou a dominar boa parte das composições dos últimos dois anos – aparece timidamente. A gama de cores também se altera. Aqui ela ainda é mais quente, com vermelhos e laranjas, criando formas que remetem a estruturas orgânicas ou fractais. Podemos ainda pensar em resquícios de uma explosão vulcânica: os vermelhos nos lembram a lava que escorre pelo relevo de uma paisagem. As pequenas zonas de azul profundo parece abrir uma fenda nesta composição, e se pensarmos em mapas e imagens geológicas geradas por equipamentos de alta precisão, elas poderiam representar lençóis freáticos ou pequenas reservas de água num planeta recém-descoberto. Figura 2 No caso da pintura acima (figura 2), Brausewetter trabalha com largas superfícies que lembram mármores e granitos usados para recobrir paredes. Mas na composição justamente dessas zonas de azul claro marmorizado ou verde, também pensamos nos tais “pans de peinture” renascentistas. Elas criam, portanto, um grande respiro na composição. Diferentemente da anterior – dominada por um intenso vermelho, e neste sentido, mais cheia e encerrada sobre si -, aqui os azuis profundos começam a fazer seu caminho por entre as formas esbranquiçadas, e combinadas a elas, abrem a composição e expandem-na para além da própria tela. Como mencionado, o que o artista vai nos propondo é sempre uma experiência diferente diante de suas composições. Aqui, não se trata mais de uma cartografia ou de um mapa geológico, mas talvez de um vestígio arqueológico de um antigo afresco, através do qual podemos acompanhar seu processo de elaboração. Figura 3 O azul profundo dominou pela primeira vez a pintura de Brausewetter numa série em que ele, depois, inscrevia sobre a superfície da tela figuras pornográficas, formando um desenho cego (figura 3). De longe, tinha-se a impressão de um conjunto de constelações flutuando num céu noturno. À medida que o espectador se aproximava da tela, desvendava uma espécie de narrativa escabrosa, quase que escondida às nossas vistas. Por baixo da grande superfície de azul profundo que agora tomava as composições por inteiro, ainda podia-se perceber toda a trama colorida que lhe dava a base. Essa série é excepcional na produção do artista: de um lado, toma um motivo que vemos com freqüência em seus desenhos e apenas numa série de pinturas feitas nos anos 1990 – estas elaboradas com tons quentes, e com figuras mais explícitas -; de outro, a grande superfície de azul profundo funciona, efetivamente, como uma matriz na qual o artista desenha suas formas. Figura 4 Figura 5 É mais ou menos na mesma época em que Brausewetter começa a empregar as largas superfícies de azul profundo que ele faz sua primeira viagem ao Brasil. A descoberta da paisagem brasileira se faz perceptível em algumas pinturas que ele realiza a partir de 2003, a exemplo das obras acima (figuras 4 e 5). Um aspecto novo delas é uma combinação de vários elementos anteriormente já experimentados, ou seja, as superfícies de azul profundo mais presentes, justapostas às formas de tramas coloridas desenhadas pela lâmina, elementos gráficos do desenho cego que víamos em composições dos anos 1990, e as superfícies esbranquiçadas que remetiam à tradição do afresco. Esses elementos formavam, então, uma paisagem, de fato, na qual inferíamos montes, o horizonte, aspectos da silhueta de uma cidade, e assim por diante. E é sobretudo nas formas curvas que sugerem um relevo que podemos pensar na paisagem brasileira. Aos poucos, essas composições foram se tornando sintéticas, nas quais primeiro vemos grandes formas trabalhadas com as técnicas já exploradas pelo artista flutuando num grande espaço de azul profundo (figura 6). Figura 6 Mais recentemente, tais formas retomam, por vezes, seus “bólides”, mas agora traduzindo recortes dos aspectos da cidade – São Paulo é, sem dúvida, uma referência fundamental para ele, em seu contato com o Brasil. Assim, a estrutura complexa e desconstruída do relevo de uma favela (figura 7), por exemplo, transforma-se em uma estrutura em “bólide” sobre esse azul profundo. Figura 7 De qualquer forma, e dentro da evolução de seu trabalho, a materialidade dessas pinturas tem grande impacto sobre o espectador: a superfície aveludada do azul profundo, as ranhuras das tramas coloridas, a textura criada pela tinta escorrida formam uma pele. Corpo e pele são termos que dão conta de exprimir o caráter essencial dessa pintura. Antes das imagens nela concebidas, sua materialidade é aquilo que atrai o espectador, fazendo dela não mais mera superfície, mas uma presença de fato. Há uma intensa vida que se agita, por vezes furiosamente, ali. Há um diálogo que de imediato se estabelece entre espectador e obra, no qual o espectador procura construir narrativas, imprimir sua própria subjetividade, ao mesmo tempo em que ele tem diante dos olhos um sujeito que se expõe por entre formas e texturas. Há também o tempo do acaso, ainda que muito bem arranjado em composições extremamente equilibradas. Na aplicação das camadas e na escolha das cores, o artista nunca constrói uma trama igual à outra. Deitando as telas no chão, somente ao final do processo ele pode saber no quê a pintura resulta. Mesmo que determinados procedimentos sejam repetidos, não existem nem formas, nem superfícies, nem mesmo composições que se repitam, pois a cada vez, o processo de feitura das telas depende da fluidez das finas camadas de têmpera, de como ela é aplicada ou de como ela escorre. Para tanto, é importante o fato da preparação das camadas de cor exigir um tempo distendido, e o artista iniciar uma tela, ir para outra, voltar à primeira, aplicando-as ao longo dos dias, semanas ou até mesmo meses e anos. Ao iniciar o processo de incisão das formas com a lâmina, ele não tem mais controle de quantas camadas, que cores, aonde estão as superfícies aplicadas na preparação das telas. Para ele, então, uma nova composição se revela à medida que ele manipula as superfícies e ele vai, assim, lidando com as surpresas que elas lhe impõem. Seu trabalho é, portanto, muito próximo ao de um arqueólogo explorando um sítio recém-descoberto. Formado numa geração de artistas que viu emergir a pintura neoexpressionista alemã e suas derivações na Áustria, nos Estados Unidos, e na Itália, por exemplo, Brausewetter parece ter reinterpretado essa tendência a partir de referências bastante distintas, e por vezes até contraditórias, mas que justamente constituem sua originalidade. Em primeiro lugar, embora seja possível reconhecer na escala de sua pintura e nas formas gestuais que elabora uma referência às grandes telas produzidas por Sigmar Polke no início dos anos 1980, há um preciosismo de suas superfícies e uma minúcia que emanam de um trabalho do artista que é quase de artesão. Além disso, há uma tensão psicológica na pintura de Brausewetter que não vem somente dos vestígios do gesto do artista, e está dada pelas formas geradas e a complexa trama de cores e texturas que lhes produz. Sua pintura ainda guarda referências ao Surrealismo e ao grupo Cobra. O artista mesmo declara que as experiências do grupo Cobra o teriam motivado a perseguir a carreira artística. De fato, as formas destorcidas, às vezes monstruosas, de trama complexa que emergem na sua pintura fazem pensar nas obras de um Pierre Alechinsky. Essas mesmas formas podem conter elementos e traçados que evocam figuras, construindo uma narrativa surrealista. É o caso de detalhes de desenhos cegos realizados ferindo a superfície de azul profundo de suas pinturas. A referência surrealista fica bastante evidente em seus desenhos, que como o próprio artista declara, são fruto de momentos de concentração e introspecção, nos quais ele deixa sua mão ser guiada por uma espécie de divagação mental, fazendo assim emergir figuras fantasiosas, estranhas, feitas de linhas altamente elaboradas que passeiam livremente pelo papel. É justamente essa sobreposição de referências, combinadas à técnica da têmpera que tornam a pintura de Brausewetter inusitada. Se as formas elaboradas parecem largas e puramente gestuais, a aplicação das camadas finas de têmpera, sua transparência e seu manuseio por meio da incisão da superfície parecem refutar a tradição da pintura abstrata informal. O contínuo envolvimento do artista com suas telas – que implica, muitas vezes, em revisitar composições terminadas e transformá-las em novas composições na reaplicação de camadas ou gravando novas formas sobre as superfícies – faz parte de uma poética na qual a pintura é processo. A questão maior do artista parece estar mesmo na deposição infinita de camadas e superfícies. Isto ocorre na sua pintura, nos desenhos – que embora sejam inicialmente estudos para sua pintura, ganham vida própria –, nas fotografias e nos objetos que ele constrói em madeira. No caso dos desenhos, é sobretudo a linha, o contorno, que concebe as formas e superfícies. Neles, a reminiscência das camadas de cor da pintura pode estar dada por formas hachuradas ou compostas de elementos gráficos. Além disso, eles sugerem a ideia de narrativa, porque são muitas vezes compostos em seqüência de quadros, como numa história em quadrinhos. Os contornos pretos vão criando formas que, na pintura, reaparecem nos desenhos cegos, ou ganham volume nos objetos que o artista constrói em madeira. Também aqui, trata-se de deposição e arranjo de camadas, por assim dizer: seus objetos, que podem constituir peças de mobiliário ou meros exercícios escultóricos, são construídos a partir de pedaços de madeira que o artista recolhe, como restos de materiais de construção, por exemplo. Sem lhes modificar as formas ou lixar as superfícies, eles vão sendo arranjados, como num quebra-cabeças, pregados um a um, para constituir um objeto novo. Brausewetter se refere a essas formas como “barroco desconstrutivo”. Tal objeto é pensado – mas não necessariamente projetado – no desenho, por via de formas de contornos pretos, que o artista chama de “bólides” (figura 8). Seus “bólides” repetem o gesto da pintura, isto é, a construção de complexas estruturas de cores, texturas e superfícies. Figura 8 Em suas fotografias, também, é através da sobreposição de camadas que ele trabalha. Elas são sempre elaboradas como trípticos que usam um repertório de imagens digitais que o artista recolhe em situações a mais diversas, que depois ele retrabalha e rearranja. Por vezes surgem nelas seus “bólides”, em desenhos digitais de contornos pretos ou brancos (figura 9). Figura 9 O reaproveitamento de materiais é outro dado relevante da poética de Brausewetter. Nem as cores, nem os tecidos, papéis são desperdiçados por ele. Tudo pode ser transformado em novas composições. É o caso de composições em papel que o artista elabora a partir das superfícies que ele usa para proteger o chão de seu ateliê da têmpera que escorre das telas em preparação, por exemplo. As várias camadas de cores que surgem ao acaso são depois recortadas, rasgadas e recombinadas para criar colagens. Então, o que inicialmente parece ser obra do acaso submete-se ao seu rigoroso senso de composição para gerar uma nova ordem, que tem como paradigma, no fim das contas, a pintura. Na pintura, na fotografia, nos objetos, nos desenhos ou colagens, a questão maior para o artista talvez seja a busca de uma ordem para além do real, como se no trabalho constante de desconstrução e rearranjo, Brausewetter quisesse alcançar um ponto de equilíbrio muito sutil, e de fato, muito delicado, porque também muito instável – sempre ameaçado pela necessidade do processo. Ana Magalhães |